A educação escolar quilombola: uma diagnose no Sapê do Norte

Apresentação

Na etapa de junho de 2008 da Escola Popular Quilombola de Educação Política e Ambiental que aconteceu na comunidade de Nova Vista em São Mateus, estiveram reunidos representantes de diversas comunidades quilombolas do Sapê do Norte, da educação e da Comissão Quilombola, da educação do campo, indígenas, técnicos agrícolas, UFES, Sindiupes e FASE para juntos iniciarmos a construção de uma diagnose da Educação Quilombola hoje no Sapê do Norte. Fizemos nesta ocasião um grande levantamento das condições gerais atuais na educação formal quilombola nas 10 comunidades presentes, uma troca de referências e uma leitura coletiva dos elementos postos.
Posteriormente a isto, aconteceu na comunidade quilombola de Linharinho uma reunião do GT do Fórum de Educação do Campo com a participação também de educadores quilombolas. E ainda duas reuniões exclusivas do grupo de trabalho dos educadores quilombolas dos municípios de São Mateus e Conceição da Barra, uma na escola da Paulista e outra em São Domingos, trocando informações e planejando ações para a política educacional quilombola.
O texto apresentado aqui é resultado deste trabalho coletivo. Da história quilombola dos que ali vivem, trabalham, estudam, dos que deixaram de estudar e do diálogo com parceiros desta área da educação. De debates, intercâmbios, formações, articulações em cursos e da persistência e resistência quilombola. Ressaltamos neste diagnóstico alguns destes aspectos que chamam a atenção quanto ao histórico da educação para os quilombolas. Traremos então aqui alguns destes fatos e análises e esperamos por prontas reações no sentido da garantia do direito à educação quilombola.

 

Acesso a escolas quilombolas

Escolas na região do Sapê do Norte, começaram a existir a aproximadamente 80 anos, como em Coxi, Conceição da Barra. Primeiro em casas, depois em construções de estuque e mais recentemente em prédios de alvenaria, a educação escolar passou a ser parte das comunidades e a alfabetização, uma realidade possível a partir daquelas gerações. Mesmo assim, muitos quilombolas hoje com 40 ou 50 anos, não puderam estudar. Da conquista da escolaridade à existência dos estabelecimentos de ensino nas comunidades, passaram-se muitas lutas. Constroem-se, destroem-se, mudam-se, desativam-se, abandonam-se. É com esta instabilidade e descaso que a educação escolar quilombola tem se dado. A presença de escolas muitas vezes parece ser mais uma concessão governamental do que uma obrigação em assegurar este direito. É incrível a facilidade que têm em se desfazer de um patrimônio destes e dispersar os alunos e os educadores. Os motivos sempre injustificáveis: municipalização, burocracia, reformas, ocupação dos terrenos com monocultura da cana e eucalipto, falta de aluno, de professor, de recursos.
Das 10 comunidades trabalhadas (6 de Conceição da Barra: Coxi, Angelim 1 e 2, São Domingos, Roda D´Água e Linharinho e 4 de São Mateus: Nova Vista, Chiado, Serraria e São Cristóvão), 5 apenas estão com escolas em funcionamento (São Domingos e Linharinho em C.B. e Nova Vista, Chiado e São Cristóvão em S.M.). Destas, apenas duas (Chiado e São Cristóvão), contam com pré escola para crianças de 3 a 6 anos, as demais contemplam apenas o ensino fundamental de 1º a 4º série, com o ensino Pluridocente (duas séries por turmas, alterando o turno das aulas e com uma professora para cada turma).
As crianças das demais comunidades sem escolas e as que estão fora desta faixa etária, para estudarem são obrigadas a um deslocamento para os centros urbanos ou distritos maiores. Dependem dos transportes precários e insuficientes e em muitos casos têm que andar quilômetros para chegar à escola ou ao ponto de ônibus, comprometendo bastante o rendimento escolar. Além da preocupação dos pais pelos riscos que correm os filhos nas péssimas estradas da região, outro sério problema é a separação dos seus filhos pequenos. A distância da escola impossibilita o acompanhamento de perto da educação escolar dos filhos e está em contradição com a educação tradicional quilombola: comunitária, familiar e do campo. Escolas como a de Angelim 1, por exemplo existiram primeiramente na casa de uma família, onde uma professora “de fora” trabalhou por 10 anos, até que o prédio fosse construído (hoje está novamente desativada). A falta de escolas nas comunidades também força os quilombolas a terem que optar entre dois de seus direitos fundamentais e constitucionais: o de permanecer na terra e o da educação.

Condições pedagógicas nas escolas quilombolas

A falta de escolas quilombolas também é um prejuízo para todo o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira, agora obrigatória pela Lei nº 10.639/03 em todos os estabelecimentos de ensino fundamental e médio. Nas comunidades quilombolas estão vivas grande parte desta importante história afro-brasileira que pode deixar de ser contada se os centros comunitários, como as escolas, forem desativados.O Estado tem se mostrado incapaz de garantir um direito desde o lugar de maior referência afro-descendente: os quilombos. Hoje são poucas as crianças quilombolas que podem usufruir desta oportunidade de estudar a sua história no seu próprio lugar, compondo este importante referencial histórico, cultural e subjetivo. Em Conceição da Barra por exemplo, o diagnóstico constatou apenas 49 crianças quilombolas estudando em suas próprias comunidades. Outro fator importante para que a lei não se implemente é o baixo índice de professores quilombolas atuando nas poucas escolas que existem. Identificamos que das 11 professoras (todas mulheres), 5 apenas eram provenientes das comunidades quilombolas. Ao menos a formação continuada de cultura afro-brasileira para as professoras está iniciada, em Conceição da Barra com a Comissão Permanente de estudos Afro-Brasileiros, CEAFRO, constituída pelo prefeito em 2007. Em São Mateus existe um grupo de educadoras dispostas, porém o caminho institucional é dos mais lentos para a constituição da Comissão Permanente. Falta ainda um maior comprometimento dos governos municipais para que estes trabalhos ganhem a dimensão social necessária e possam garantir a formação dos educadores rurais e urbanos. Sem escolas, sem professores quilombolas e sem formação específica, como a lei se implementará?

Para uma formação específica, seria fundamental o amplo acesso das professoras a materiais e equipamentos pedagógicos que tratem diretamente das questões étnicas e raciais, o que é raro. Os alunos então não têm nenhum acesso a materiais didáticos elaborados regionalmente que tragam perspectivas afirmativas para os negros. A capoeira é ensinada apenas em uma destas comunidades (Nova Vista) e assim como outras atividades físicas e artísticas, as escolas não contam com professores específicos para estas áreas. Até hoje as grades curriculares escolar chegam prontas para as professoras que trabalham nas escolas quilombolas e que também desconhecem a existência de um projeto político pedagógico para as escolas nas comunidades. A gestão das escolas em grande parte fica a cargo de supervisoras itinerantes, não tendo a comunidade, os pais e as educadoras a autonomia necessária para uma pedagogia quilombola.

Condições estruturais das escolas quilombolas

As professoras ressaltam grandes dificuldades de trabalho pelas condições físicas das escolas das comunidades. Um dos principais e mais recorrentes problemas levantados é relacionado à água, quer seja quanto ao acesso ou quanto a qualidade. Linharinho já ficou um ano inteiro sem nenhum abastecimento de água, por exemplo. Isto acontece com freqüência também em São Domingos e em Roda D´Água, quando a escola funcionava até o ano passado. As professoras tinham que acumular ainda a função de provir a escola com água, carregando baldes cheios por longas distâncias desde os córregos que resistiram cercados em meio ao eucaliptal e canavial. Isto também acontece com as professoras de Chiado enquanto a bomba disponibilizada não é colocada em funcionamento. Este sistema de bomba, no entanto, depende de alguém para fazer o bombeamento, como no caso de Nova Vista, que acontece duas vezes por dia. A qualidade da água é bastante questionada não só pelas professoras como pelos próprios pais, que há anos aguardam o relatório de análise feito pela FUNASA, sem nunca ter sido disponibilizado.

A falta de investimentos do poder público nas escolas tem aberto mais um campo de atuação para o poder privado. O grande setor empresarial na região que já derrubou escolas (é o caso da usina de cana DISA em Angelim 2), já expulsou milhares de famílias quilombolas de suas terras (é o caso da Aracruz Celulose em todo o Sapê do Norte) e vêm perfurando o pouco de terra que restou aos quilombolas com gasodutos e poços (é o caso da Petrobrás em São Jorge e Divino Espírito Santo), agora dizem ser socialmente responsáveis por dar recursos para que a comunidade reforme os espaço físico das escolas (a Aracruz Celulose em Nova Vista e Petrobras em Linharinho, por exemplo). Fazendeiros em conflito declarado e aberto com os quilombolas, no Movimento Paz no Campo, também atuam na brecha escolar deixada pelo poder público no setor de transporte (é o caso de São Jorge).

Os prédios das escolas contam com uma ou duas salas, um ou dois banheiros e cozinha. A luz chegou há pouco tempo em algumas, por exemplo Linharinho (1 ano), Roda D´Água nunca teve. O espaço externo das escolas não tem área reservada e equipada de lazer para as crianças brincarem e quadras para praticarem esportes. Muitas vezes a proximidade das escolas com ruas e estradas, não deixam nenhuma segurança para as crianças. Os equipamentos áudio visuais também não estão completos ou disponíveis em todas as comunidades. A procura por materiais de pesquisas em bibliotecas deficientes, como em São Cristóvão, ganharam recentemente algum reforço com a Arca das Letras do governo federal (ex.: Linharinho, São Domingos, São Jorge)

O trabalho de serventes e merendeiras não tem sido uma regra para o funcionamento das escolas. Uma ou outra se revezam nos cuidados com a escola e em alguns casos, as professoras ainda têm acumulado também estas funções. A organização da escola, limpeza e alimentação das crianças são atividades fundamentais para que a educação escolar aconteça a contento. No caso da merenda, há reclamações quanto a quantidade disponibilizada pelos municípios para o número de alunos. Quanto à qualidade, falta um acompanhamento de profissionais da nutrição, gerando disparidades culturais e nutricionais, quando o hot dog substitui o beiju, bolo de aipim, cuscuz, frutas e tantos outros quitudes da produção e da culinária tradicional quilombola. Passo ao largo uma valorização da produção e da culinária quilombola na dieta escolar.

Acesso a outras práticas, níveis e instituições de ensino

A pouca terra que resta aos quilombolas e as difíceis condições agrícolas na região, tem sido sintomático também no ensino escolar. A prática e o saber tradicional agrícola quilombola são pouco investidos ou trabalhados durante o período escolar e pós escolar. Das 10 comunidades, apenas 4 (Nova Vista, Serraria, São Cristóvão e Angelim 1) têm jovens formados ou freqüentando Escolas Famílias Agrícolas, na pedagogia da alternância. E mesmo aqueles que tiveram a chance desta formação enfrentam ainda a dificuldade de trabalhar em prol da agricultura quilombola, por falta de reconhecimento local ou mesmo de acesso a terra. A maior parte dos jovens estão migrando das comunidades para as periferias urbanas em busca de trabalho. Alguns jovens quilombolas necessitando trabalhar, têm sido absorvidos como mão de obra de empreiteiras da Aracruz Celulose, da DISA e mesmo pelo carvão, ora interrompendo os estudos, ora distanciando-se ainda mais dos seus conhecimentos agrícolas e buscando formação técnica nas áreas afins destas empresas que possam vir a oferecer um vínculo empregatício.
A evasão escolar em todo o Sapê do Norte é grande e praticamente não tem tido oportunidades de EJA para os quilombolas, apesar da demanda, seja a partir do analfabetismo das gerações mais velhas, seja a partir da interrompida vida escolar de uma juventude em claro processo de desterritorialização.
Também o acesso quilombola ao ensino superior é bem pouco, menos de uma dezena nas 10 comunidades focais. Apenas as professoras, motivadas pela obrigatoriedade de formação superior até 2010, buscaram esta complementação escolar na Pedagogia. No entanto, apesar da exigência, apenas uma professora ingressou por cota em uma instituição pública. As demais, freqüentam cursos pagos por elas próprias em instituições privadas de São Mateus.

Conceição da Barra, 27 de julho de 2008

FASE/ES e GT da Educação Quilombola do Sapê do Norte

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