‘O mercado de carbono ignora os danos sociais e ambientais dos monocultivos’
Educadora da Fase, Clara Junger relata reflexões feitas no encontro da Rede Alerta Contra os Desertos Verdes
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O enfrentamento à crise climática requer medidas muito mais abrangentes do que meros cálculos de sequestro de carbono. Sem considerar a proteção da sociobiodiversidade, as soluções serão sempre falhas, não resolvendo o problema do clima e agravando a degradação ambiental e social, principalmente no hemisfério sul. O posicionamento é da educadora da Federação dos Órgãos para a Assistência Social e Educacional no Espírito Santo (Fase-ES) Clara Junger, que participou do último encontro anual da Rede Alerta Contra os Desertos Verdes, realizado em São Mateus, norte do Estado, reunindo pesquisadores, organizações da sociedade civil e movimentos sociais capixabas, fluminenses, baianos, gaúchos e matogrossenses.
Para a educadora, “o maior problema do mercado de carbono é reduzir a crise climática a apenas cálculos de emissões de carbono”, especialmente quando usa os monocultivos como forma de compensar emissões. “As monoculturas causam danos para o solo, as águas, a biodiversidade e os povos tradicionais. O eucalipto no norte do Espírito Santo foi um dos principais responsáveis pelo desmatamento da Mata Atlântica. Hoje há uma crítica contra a soja na Amazônia, mas a Suzano [ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose] já fez isso na Mata Atlântica do norte do Espírito Santo e sul da Bahia, e está fazendo a mesma coisa, o mesmo desmatamento, no Cerrado, principalmente no Mato Grosso do Sul”.
Dar visibilidade a essa incoerência e imenso equívoco é fundamental, avalia a ambientalista. “Esses cálculos de sequestro de carbono ignoram os danos ds monocultivos, que também são responsáveis pela crise climática. Esse reducionismo de emissão de carbono é o que justifica que as empresas e os governos tentem compensar a exploração de petróleo com monocultivo de árvores e facilita que a Suzano, por exemplo, se ‘pinte de verde’ [greenwashing], como se a conta fechasse, sendo que os danos só se acumulam”.
Os monocultivos, explica, secam nascentes e outras fontes de água, modificam o regime de chuvas, contaminam e empobrecem os solos, poluem as águas, reduzem a biodiversidade, invadem territórios de povos e comunidades tradicionais e violam outros direitos fundamentais. “Não dá para excluir os seres humanos dessa conversa ambiental. Não dá para não levar em conta a invasão de terras indígenas e quilombolas que foi e ainda é muito violento. Comunidades que sofrem com seca, com cercamento de áreas que eram coletivas, para plantio de alimentos, e hoje são ocupadas com eucaliptos que não alimentam ninguém, só os bolsos dos empresários”.
Nesses territórios, são comuns as intoxicações por agrotóxicos dispersados por drones, que assolam pessoas e animais. “Temos relatos de animais sofrendo abortos, nascendo com má formação, pessoas com problemas de vista, câncer, e isso não está em nenhum cálculo de mercado de carbono”.
Clara lembra que são violações que já ocorrem há gerações pelas grandes empresas do agronegócio de monocultivos, conforme demonstrou um estudo recente solicitado pelo Ministério Público Federal (MPF), que apontou as relações promíscuas entre a então Aracruz Celulose e a ditadura militar, na grilagem de terras e prisões e torturas de indígenas e quilombolas. “A Suzano, quando compra essas empresas, tem que ser responsabilizada por esse passivo social e ambiental”, avalia.
Carta política
Essas reflexões constam na carta política da Rede Alerta Contra os Desertos Verdes, publicada na última semana, com base nas discussões realizadas durante o encontro. “Árvores transgênicas, créditos verdes e de carbono, padrões de governança ESG são novas roupagens usadas por empresas que plantam monocultivos de árvores e que sempre tentaram ser tratadas como florestas para ganhar apoio político e ambiental. No entanto, a sociedade civil organizada conhece desde o tempo da ditadura militar as artimanhas empresariais para se impor sobre os territórios e conspirar contra o sistema democrático brasileiro, como é o caso da Aracruz Celulose revelado em recente pesquisa encomendada pelo MPF. Por todos estes motivos, a Rede Alerta contra os Desertos Verdes denuncia estes crimes e exige reparações imediatas! “, afirma o documento.
Uma das visitas técnicas do encontro foi à comunidade do Angelim 2, que integra o conjunto de mais de trinta comunidades certificadas no Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte, em São Mateus e Conceição da Barra, que há cinco décadas é usurpado pela Suzano, sem que o governo do Estado interfira efetivamente de forma a cessar as violações de direitos.
A carta inclui a problemática das famílias que reivindicam a reforma agrária, destacando que o Estado tem sete acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em áreas dominadas pelos monocultivos da Suzano. E aborda os territórios tradicionais de pesca artesanal, também impactados pela multinacional de celulose. “A Mata Atlântica foi destruída pela Suzano, muitos rios e córregos estão secos e contaminados, as nascentes desprotegidas, neste semiárido que se tornou a região, já não existem mais pescados. Como povos da água, os pescadores artesanais estão adoecendo, morrendo e gritando por socorro”.
As entidades atacam ainda o elevado consumo de água da papeleira. “A Suzano, consumidora voraz de água tanto nas indústrias quanto nos plantios, conseguiu junto à ANA (Agência Nacional de Águas) a outorga para 44 bacias hidrográficas em nove estados do Brasil e diz, em seus relatórios de ‘sustentabilidade’, estar em conformidade com os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) do cuidado com a água. Mas, no ES, não se identifica na AGERH (Agência Estadual de Recursos Hídricos) registros de portarias de outorgas para nenhum uso de água que a empresa faz no norte do Estado. Diante das denúncias, órgãos públicos e o MPES (Ministério Público Estadual) dizem não haver indícios suficientes de prejudicialidade e arquivam processos”, denunciam.
O manifesto também menciona os conflitos históricos no sul da Bahia, onde atualmente o MPF/BA tem feito atuações fortes contra as violações de direitos e em favor do cumprimento da consulta livre, prévia e informada, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), por meio do Fórum em Defesa das populações indígenas e comunidades tradicionais na Bahia. E cita os avanços dos desertos verdes sobre o Cerrado no Mato Grosso do Sul – por meio da Suzano, Arauco e Eldorado Brasil – e sobre a Mata Atlântica no Rio de Janeiro.
“De olho no mercado de carbono, a Suzano avança para o Mato Grosso do Sul, onde pretende instalar o maior projeto do mundo de plantações para suposto sequestro de carbono, certificado pela empresa Verra, que tem acumulado escândalo após escândalo na mídia internacional. Toda essa expansão da Suzano se dá com o recente aporte financeiro de US$ 725 milhões do Banco Mundial/IFC. Com o histórico de terras griladas para o agronegócio e da vasta destruição socioambiental da região, os plantios já implantados da Suzano, somados ao Projeto Cerrado (600 mil hectares) e de outras empresas como a Arauco, disputam o espaço com outros monocultivos como a soja, tornando o estado dependente de alimentos em 86% e o segundo estado que mais mata indígenas, exatamente como consequência da pressão de expansão do agronegócio”, descreve a Rede Alerta.
‘Sem limites de crescimento, a Suzano negocia a portas fechadas com governo do estado do Rio de Janeiro, planos de novos plantios de até 600 mil hectares no norte e nordeste fluminense, onde argumenta ser terra arrasada e sem conflitos. Recorrendo a mecanismos variados para este crescimento, no Rio Grande do Sul a recente flexibilização do zoneamento ambiental permite que a área destinada aos monocultivos de pinus e eucalipto quase quadruplique”, acrescenta.
A carta é assinada pela Fase e as seguintes organizações: World Rainforest Movement (WRM); comunidades quilombolas de Volta Miúda – Caravelas, extremo sul da Bahia; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Movimento Nacional de Direitos Humanos no ES (MNDH); Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra (CDDH); Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Espírito Santo (COEQ); Coordenação das Comunidades Quilombolas do Estado do Espírito Santo ‘Zacimba Gaba’; Grupo Tortura Nunca Mais/Rio de Janeiro; Federação Anarquista Capixaba (Faca); Instituto Social Capixaba (ISC); Movimento de Luta pela Terra (MLT); e Laboratório de Geografia Agrária – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Campus Três Lagoas.